Por Paulo Ricardo
‘Moolaadé’ é um filme de 2004 do diretor senegalês Ousmane Sembène, conhecido como o ‘pai do cinema africano’, que trata de um tema bastante relevante ainda hoje em dia, que é a mutilação genital feminina praticada em nome da religião – mas que na verdade é uma tradição machista disfarçada. O filme foi premiado em Cannes na mostra Un Certain Regard, e em que pese o tema estar longe de ser um docudrama etnográfico, o canto do cisne do diretor tem humor e é carregado de uma beleza visual hipnótica, sendo a fotografia, o colorido e o exuberante figurino responsáveis principais neste quesito.
O confronto é provocado pela destemida Collé (Fatoumata Coulibaly), ao aceitar o papel de protetora de quatro meninas que fogem do antigo ritual e buscam proteção em seu colo. Ela já havia desafiado a ordem ao não permitir que sua filha fosse mutilada quando criança, o que faz da menina uma ‘bilakoro’, ou seja, uma mulher que não fez a purificação e portanto não pode ser desposada por nenhum homem. E esse conflito vai mais além do que uma disputa entre tradição e modernidade, já que Collé lança mão da própria tradição ao proclamar o moolaadé, uma espécie de ritual que só poderá ser quebrado por quem a invocou e consiste em esticar uma corda em frente a casa onde as meninas estão refugiadas e por ela ninguém poderá passar. Está armado então a trama que terminará numa litigiosa reconsideração de valores religiosos e culturais.
O patriarcalismo que decide que uma mulher ‘não purificada’ não pode se casar é o mesmo que sob a tutela da religião promove o casamento de meninas de 11 anos e que pode destruir impunemente numa fogueira em praça pública os rádios de suas esposas, com a intenção de barrar a marcha do progresso e impedir independência nos posicionamentos delas.
Mas Sembène parece nos dizer que as grandes revoluções começaram nesses pequenos – mas fortes – atos de resistência e enfrentamento ao longo da História, e que na mesma fogueira onde queimavam o progresso, elementos que não devem ter mais lugar nos dias atuais também podem ser queimados.




Fotos: Reprodução.